sexta-feira, outubro 19, 2012

Ninguém quer saber do Poeta

As pessoas passam e seguem. As pessoas sentam-se e viram as costas. Ninguém quer saber de um poeta de bronze que já fez toda a poesia que tinha para fazer, para ele próprio e para mais uns quantos heterónimos.
De maneira que só uma Ofélia balzaquiana, de vestido vermelho, encara o poeta, esperando talvez que lhe saia um poema da testa, ou uma carta do fundo de uma arca perdida no peito.
 
Meu amorzinho, meu Bebé querido:
Estou inteiramente só - pode dizer-se; pois aqui a gente, que realmente me tem tratado muito bem, é em todo o caso de cerimónia; não me faz, nem era de esperar, companhia nenhuma. E então parece-me que estou num deserto; estou com sede e não tenho quem me dê qualquer cousa a tomar; estou meio-doido com o isolamento em que me sinto e nem tenho quem ao menos vele um pouco aqui enquanto eu tentasse dormir.
“Estou cheio de frio, vou estender as pernas para fingir que repouso.
“Ai, meu amor, meu Bebé, minha bonequinha, quem te tivesse aqui! Muitos, muitos, muitos, muitos, muitos beijos do teu, sempre teu
Fernando
  
E o engenheiro Álvaro de Campos, que ia a passar, a caminho da Tabacaria, falando com os seus botões:
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.”
 
Texto João Francisco. Foto de Francisco João / Direitos reservados
Fernando Pessoa: caricatura de António na estação do Aeroporto do Metropolitano de Lisboa
 
Referências poéticas no Beco das Barrelas

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