Ponho-me
a olhar a Avenida cá de cima, da minha água-furtada e meu refúgio, e digo-lhe
seu Apolinário: tudo isto levou uma grande volta... Olho cá de cima esta Avenida,
que foi pacata e alheia ao mundo, e quase nem a reconheço…
Saudades
para Dona Genciana,
in Léah e Outras Histórias, José
Rodrigues Miguéis
Em busca da
Avenida de Miguéis, houve quem desviasse o local da acção para a
Avenida da Liberdade. Mas «novinha em folha, como o regime», a começar «lá em
baixo, num boqueirão sinistro», grande artéria por onde corria a Vida, e também
a Morte, a caminho do Alto de S. João, a Avenida de Dona Genciana só podia ser a Almirante Reis.
«Que sossego o
desses dias agitados». Aquilo «não era a Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um. Todos
se conheciam. Conhecia-se a história das famílias, das pequenas do bairro, os
seus hábitos e gostos. O mundo era longe», para lá do redondel da praça. Para
além da Praça era a poesia. «A brisa trazia lá de cima um cheiro fresco de
húmus, de águas e verduras. As meninas pensativas, cheias de Júlio Dinis,
escutavam o fado gemendo nas ruas, ou então dedilhavam Chopin ao piano».
Mas o
progresso, a civilização também bateram à janela de Dona Genciana. Vieram os
eléctricos. O comércio animou-se. Os cinemas invadiram a Avenida com os seus
filmes de paixão. E «veio a guerra e a Avenida entristeceu. As luzes do gás
foram substituídas pelas chamas turvas do petróleo. Ficava-se à noite em casa,
a espetar bandeirinhas de papel em mapas, sonhando com a Vitória».
Até que um dia
a Avenida pareceu atingir «os limites naturais do crescimento. Chegada à Praça,
ali ficou por muitos anos, enroscada».
Para não se
perder de si próprio, nem perder pé na vida, o narrador do conto de José
Rodrigues Miguéis voltou a erguer um canto da cortina e ficou a olhar o que,
para ele, e para os da velha guarda lá do sítio, foi e há-de ser sempre a casa
da Dona Genciana: era aquele rés-do-chão alto, com duas janelas de peitoril,
que se via dali, da água-furtada do narrador.
Talvez o
terceiro andar da Almirante Reis onde viveu o próprio Miguéis, sobre um cenário
de telhados de Lisboa pintados por Carlos Botelho.
Texto e fotos Beco das Barrelas
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