Lisboa, 2008
A mim, o Mário Alberto contou-me que foi operário
cerâmico, empregado de escritório, recauchutador, figurante, bailarino
excêntrico, músico gestual. Mas na sua profissão, cenógrafo, e na paixão da sua
vida, o teatro, este homem é mesmo um grande senhor.
Há prémios de cenografia a atestá-lo.
Mas os prémios dizem menos que a obra que ergueu em mais de cinquenta anos de
trabalho para dezenas de grandes e pequenas companhias de teatro, em todo o
país. Dos grupos universitários ao teatro de revista, passando por grupos
independentes, pelo teatro comercial e até pelo Teatro Nacional.
Para além do teatro fez cenografia para
ópera, décors, figurinos e direcção
artística para televisão e cinema. Mas é do teatro que mais gosta. Diz que «o teatro
até tem cheiro». Trabalhou com todos os grandes nomes do teatro português,
sobre textos de todos os grandes dramaturgos. Regularmente expõe a sua pintura.
Pintor, cenógrafo, figurinista,
figurante, figura, protagonista, maquinista, artista, talentoso, brilhante,
portentoso, competente, singular, original.
O Mário Alberto travou conhecimento com
o teatro na juventude, em
Coimbra. E a paixão consumou-se na primeira oportunidade. Quando,
ainda jovem, veio para Lisboa, trazia já experiência das peças de teatro de
cordel exibidas pela trupe em Coimbra e arredores.
Em Lisboa, empregou-se a recauchutar
pneus no Largo do Andaluz e à noite fazia figuração no Teatro Avenida. Depois
passou para empregado de escritório numa companhia de navegação na Rua do
Alecrim. Até ao dia em que o director da companhia, por mero acaso, assistiu a
um espectáculo de teatro e deparou com o seu dactilógrafo em cima das tábuas do
palco. No dia seguinte chamou-o e disse-lhe: Tem que escolher: ou esta companhia, que é uma casa séria, ou os
fantoches.
Atelier na casa (demolida) do Parque Mayer |
Mário Alberto não hesitou. Escolheu os
fantoches.
O Mário é assim. Inquieto, alvoroçado,
travesso, exigente, insatisfeito, satisfeito, tolerante, franco, entusiasta,
fervente, convicto, arrebatado, impulsivo, romântico, feliz, fascinante.
Malandro.
Na época em que aderiu aos fantoches, anos 40/50, o teatro tinha má
fama e o proveito também não era lá grande coisa. As dificuldades e incertezas
da carreira, a par de um espírito boémio e andarilho, levaram Mário Alberto a
outras incursões. Foi bailarino cómico, na Turquia. Passou pelo que designa por
música… gestual: o contrabaixo tinha as cordas lassas e as maracas estavam
vazias. Dir-se-ia hoje que era música virtual. Também lavou pratos e foi
empregado de bar na Holanda e em França.
Eis o Mário Alberto.
Viajante, andarilho, andante,
passageiro, aventureiro, conquistador, diurno, noctívago, sedutor, boémio,
conversador, comunicador, vivente, sobrevivente, camarada, Constituinte.
Amador.
Por entre figurações no teatro e no
cinema, Mário Alberto descobriu que a sua verdadeira vocação nos fantoches era a cenografia. Começou como
ajudante, a lavar pincéis. Por Lisboa, com destino a S. Carlos, passavam então
grandes cenógrafos italianos que faziam escola. Eram os tempos dos cenários de
papel e pano pintado. Hoje, a cenografia é mais à base do desenho de luzes. A
pobreza de recursos leva grande parte dos grupos independentes a dispensarem o
cenário e o cenógrafo. Mário Alberto pertence à última geração de cenógrafos. E
como cenógrafo é genial.
Prodigioso, mágico, fantasista,
inventor, inventivo, imaginativo, fantasiador, sonhador, engenhoso, inovador,
criador, gerador, fecundo, sábio, lúcido, trabalhador, admirável, bom, melhor,
óptimo, superlativo, absoluto, simples, substancial, sólido. E líquido.
O Mário Alberto foi o último resistente
do Parque Mayer mas sem saudades da época de ouro da revista, porque esse era o
tempo em que a Censura, para além dos textos, também vigiava e cortava os
cenários. De 25 para 26 de Abril de 1974, a revista com cenários e figurinos de
Mário Alberto em cena no ABC acrescentou uma «Parra Nova» ao título «Tudo a
Nu». Nesses tempos, Mário Alberto participou na ocupação do Sindicato, na
fundação de companhias como o Adóque e A Barraca.
É este o Mário Alberto.
Militante, praticante, interveniente,
cúmplice, cooperante, renovador, resistente, revoltado, insubmisso, rebelde,
indomável, guerrilheiro, lutador, libertário, livre, disponível, espontâneo,
inconformista, visionário, sonhador, utopista, subversivo, revolucionário.
Irreversível.
Passámos por factos da vida do Mário
Alberto. Agora vamos a cenários. E há um cenário de Lisboa que tem o cenógrafo
Mário Alberto como protagonista.
«Estão a despontar as folhas novas» nas
árvores da Avenida. Esta é a paisagem sobre a qual se recorta a grande figura
em redor da qual se compõe o cenário. Afinal, mais folha, menos folha, «a
comédia e o drama podem passar-se debaixo da mesma árvore».
Em todas as estações, para quem sobe ou
desce a Avenida da Liberdade – Liberdade Sempre – entre o Parque Mayer e o
Rossio, com algumas paragens obrigatórias, lá vem ele, mesmo quando não vem.
Meia Lisboa conhece-o, a outra meia não sabe o que perde.
O Mário Alberto. Há palavras para definir
e representar este Homem.
Generoso, liberal, franco, apaixonado,
sensível, desprendido, independente, verdadeiro, seguro, leal, sincero,
autêntico, vernáculo, afectuoso, fraternal, solidário, recíproco, solícito,
propenso, especial, particular, colectivo, comovido, comovente, integral,
imprescindível. Porreiríssimo.
Desenho de Mário Alberto, original na colecção do autor do texto |
Irreverente, excessivo, desmedido,
exorbitante, transgressor, irrequieto, turbulento, buliçoso, bebedor, comedor,
pecador, descarado, provocador, frontal, crítico, agitador, polémico, irónico,
sarcástico, satírico, zombeteiro, certeiro, gozador, impertinente, intenso,
implacável, demolidor, incorrigível, reincidente, consequente, fulgurante,
surpreendente, magnífico, exuberante. Festivo.
É o protagonista do cenário da Avenida.
Liberdade Sempre. E cá está ele.
Inconfundível. Exclusivo. Excelente.
Único. Amigo. Imenso Amigo.
Tantos adjectivos e tanto por dizer.
Obrigado Mário Alberto.
Bravo Mário Alberto.
João Paulo Guerra, Janeiro de 2008, na homenagem de Lisboa a Mário Alberto (1925 - 2011)
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