quarta-feira, janeiro 02, 2013

Saudades para Dona Genciana


A Avenida
"Ponho-me a olhar a Avenida cá de cima, da minha água-furtada e meu refúgio, e digo-lhe seu Apolinário: tudo isto levou uma grande volta. Antigamente vivia-se aqui como num céu aberto. Nem faz ideia. Onde isso vai."
Saudades para Dona Genciana,
José Rodrigues Miguéis

José Rodrigues Miguéis (1901 - 1980) nasceu na Rua da Saudade e está sepultado no Alto de São João. Passou grande parte da vida nos Estados Unidos. Em Lisboa viveu num terceiro andar da Av. Almirante Reis. Foi dali que lhe ficaram as Saudades para Dona Genciana, conto incluído no volume Léah e Outras Histórias.
Centro Republicano Almirante Reis
Em busca da Avenida de José Rodrigues Miguéis, houve quem desviasse o local da ação para a Avenida da Liberdade. Mas por fim assentou-se na sala dos mapas do imaginário de Miguéis: "Novinha em folha, como o regime" - o relato inicial era dos alvores da República -, a começar "lá em baixo, num boqueirão sinistro", grande artéria por onde corria a Vida, e também a Morte, a caminho do Alto de S. João, a Avenida de Dona Genciana só podia mesmo ser a Almirante Reis.   
 
     "Que sossego o desses dias agitados". Aquilo "não era a Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um. Todos se conheciam. Conhecia-se a história das famílias, das pequenas do bairro, os seus hábitos e gostos. O mundo era longe", para lá do redondel da Praça. "A brisa trazia lá de cima um cheiro fresco de húmus, de águas e verduras. As meninas pensativas, cheias de Júlio Dinis, escutavam o fado gemendo nas ruas, ou então dedilhavam Chopin ao piano.
Praça do Chile: cruzamento para o Alto de São João
"Os amores eram banais, talvez, mas cheios de boas intenções. Havia cochichos, apertos de mão ardentes, bilhetinhos secretos, uma vertigem no ar". O narrador travava então os primeiros corpo-a-corpo com o verbo amar, da água-furtada para as janelas de peitoril de Dona Genciana.       
        
     Já na casa dos anos 40, quando o narrador voltou ao seu posto de observação, poucos se lembrariam de Dona Genciana, mas o narrador é que não a esquecia.
"Olho cá de cima esta Avenida, e quase nem a reconheço. Chego a ter saudades. Antigamente havia uma honestidade quase dolorosa em tudo isto, um recato nas aparências. Isto era provinciano mas sincero". Depois, "entrou aqui um fungo misterioso. Muita cara nova, outros costumes, quartos de aluguer, casas suspeitas".
Dona Genciana não tinha estrelas
 nem tabuleta para a rua
     Para não se perder de si próprio, nem perder pé na vida, o narrador do conto de José Rodrigues Miguéis voltou a erguer um canto da cortina e ficou a olhar o que, para ele, e para os da velha guarda lá do sítio, foi e há-de ser sempre a casa da Dona Genciana: era aquele rés-do-chão alto, com duas janelas de peitoril, que se via dali, da água-furtada do narrador.
     Talvez o terceiro andar da Almirante Reis onde viveu o próprio Miguéis, sobre um cenário de telhados de Lisboa pintado por Carlos Botelho. Hoje, aquele número da Avenida Almirante Reis tem mais quatro andares.


 Texto e fotos Beco das Barrelas
/ Direitos reservados.

Sem comentários:

Enviar um comentário