A Avenida |
"Ponho-me a olhar a Avenida cá de cima, da
minha água-furtada e meu refúgio, e digo-lhe seu Apolinário: tudo isto levou
uma grande volta. Antigamente vivia-se aqui como num céu aberto. Nem faz ideia.
Onde isso vai."
Saudades
para Dona Genciana,
José Rodrigues Miguéis
José Rodrigues Miguéis
José Rodrigues
Miguéis (1901 - 1980) nasceu na Rua da Saudade e está sepultado no Alto de São João. Passou
grande parte da vida nos Estados Unidos. Em Lisboa viveu num terceiro andar da
Av. Almirante Reis. Foi dali que lhe ficaram as Saudades para Dona Genciana, conto incluído no volume Léah e Outras Histórias.
Centro Republicano Almirante Reis |
Em busca da
Avenida de José Rodrigues Miguéis, houve quem desviasse o local da ação para a
Avenida da Liberdade. Mas por fim assentou-se na sala dos mapas do imaginário
de Miguéis: "Novinha em folha, como o regime" - o
relato inicial era dos alvores da República -, a começar "lá em baixo, num
boqueirão sinistro", grande artéria por onde corria a Vida, e também a
Morte, a caminho do Alto de S. João, a Avenida de Dona Genciana só podia mesmo
ser a Almirante Reis.
"Que sossego o desses dias
agitados". Aquilo "não era a Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um. Todos
se conheciam. Conhecia-se a história das famílias, das pequenas do bairro, os
seus hábitos e gostos. O mundo era longe", para lá do redondel da Praça. "A
brisa trazia lá de cima um cheiro fresco de húmus, de águas e verduras. As
meninas pensativas, cheias de Júlio Dinis, escutavam o fado gemendo nas ruas,
ou então dedilhavam Chopin ao piano.
Praça do Chile: cruzamento para o Alto de São João |
"Os
amores eram banais, talvez, mas cheios de boas intenções. Havia cochichos,
apertos de mão ardentes, bilhetinhos secretos, uma vertigem no ar". O
narrador travava então os primeiros corpo-a-corpo com o verbo amar, da
água-furtada para as janelas de peitoril de Dona Genciana.
Já na casa dos anos 40, quando o narrador
voltou ao seu posto de observação, poucos se lembrariam de Dona Genciana, mas o
narrador é que não a esquecia.
"Olho cá
de cima esta Avenida, e quase nem a reconheço. Chego a ter saudades.
Antigamente havia uma honestidade quase dolorosa em tudo isto, um recato nas
aparências. Isto era provinciano mas sincero". Depois, "entrou aqui
um fungo misterioso. Muita cara nova, outros costumes, quartos de aluguer,
casas suspeitas".
Dona Genciana não tinha estrelas nem tabuleta para a rua |
Para não se perder de si próprio, nem
perder pé na vida, o narrador do conto de José Rodrigues Miguéis voltou a
erguer um canto da cortina e ficou a olhar o que, para ele, e para os da velha
guarda lá do sítio, foi e há-de ser sempre a casa da Dona Genciana: era aquele
rés-do-chão alto, com duas janelas de peitoril, que se via dali, da
água-furtada do narrador.
Talvez o terceiro andar da Almirante Reis
onde viveu o próprio Miguéis, sobre um cenário de telhados de Lisboa pintado
por Carlos Botelho. Hoje, aquele número da Avenida Almirante Reis tem mais quatro andares.
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